Carta de uma orientadora, de Débora Diniz
Nosso trabalho acadêmico é, essencialmente, transitivo: é um bordado para outras pessoas admirarem, usarem ou guardarem na estante.
"Não desacredite do poder do conhecimento acadêmico – se é certo que nosso ofício é uma entre muitas formas de produzir saberes e respostas provisórias aos problemas, a ciência é um espaço de poder que precisa ser ocupado por pessoas comprometidas com os valores do bem viver e da justiça".
Em agosto de 2024, vivi, pela primeira vez, a experiência de ser, formalmente, um orientador de trabalho de conclusão de curso na universidade. Eu já havia ajudado alguns alunos e colegas em outros momentos, mas nunca neste papel formal, carregado de responsabilidade e, de certa forma, poder.
Neste momento, nada melhor do que recorrer à nova edição de um texto honesto e lúcido, escrito por uma das grandes pesquisadoras do nosso país, a professora Débora Diniz.
Para quem já me acompanha, sabe que, há muitos anos, escrevi sobre o documentário A casa dos mortos, produzido pela antropóloga, e que discute a triste realidade dos manicômios judiciários. À época, não somente o tema me chamava a atenção, já que pesquisava o trabalho de policiais penais em uma instituição semelhante em Minas Gerais, mas a recomendação de uma professora admirada também.
Débora Diniz, nascida em 1970, em Maceió, Alagoas, foi uma indicação da professora Luciana Kind, do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUC Minas, em suas belas aulas de metodologia, durante o mestrado. Ela que me levou a iniciar os diários do mestrado, na série "de volta à cadeira de aluno", que durou alguns meses, mas me ajudou bastante a documentar a volta aos estudos.
Além de ser uma grande pesquisadora, Débora Diniz contribui ativamente para discutir o papel da ciência e do cientista, utilizando as redes sociais, trazendo importantes reflexões em seu canal no YouTube, produzindo também documentários e outras formas de comunicar/produzir o conhecimento.
Inclusive, ela tem feito algumas transmissões e bate papos ao vivo com os leitores da nova Carta, que estão disponíveis no canal.
Recentemente, Débora reeditou e atualizou a sua Carta de uma orientadora: sobre pesquisa e escrita acadêmicas (Civilização Brasileira, 2024). Basicamente, a professora utiliza sua longa experiência acadêmica para escrever uma espécie de "carta introdutória" a novos orientandos.
Uma espécie de "se vier até mim, leia esse recado antes", mas não em tom de ameaça, pelo contrário, em um sentido acolhedor, de pré orientação, se podemos chamar assim.
Pra mim, que nos últimos dez anos, vivi bastante o papel de "orientando" (mestrado e doutorado), e só recentemente ocupei o papel de "orientador", ler esta carta foi um exercício muito interessante. Como afirma a professora, "aprendemos a orientar pela experiência de termos sido nós mesmas orientandas de alguém, e pela sensibilidade sobre como se dão as relações de cuidado" (262).
Há quase um ano, escrevi um texto onde ressalto o carinho que construí, ao longo dos anos, pelo meu eterno orientador, o Prof. José Newton Garcia de Araújo. E o fiz ao comentar o seu livro de contos, "Retalhos de Fazenda", o que diz bastante dessa relação que, mais do que puramente acadêmica, pode se tornar, muitas vezes, uma relação de amizade e admiração, para além dos muros científicos.
Como indica muito bem Débora Diniz, "uma relação de orientação não é de posse, domínio ou propriedade – é uma relação de ensino, troca, aprendizado mútuo, hospitalidade e ternura. Há confronto de ideias e argumentos, há desigualdade de poder, é verdade, porém, é um poder a ser habitado com respeito e admiração recíproca" (posição 171).
Acho que é assim que deveria e/ou poderia ser, ainda que não seja sempre assim, como ressalta a pesquisadora ao discutir os desencontros na trajetória acadêmica. "Orientadora é ser uma escutadeira, uma editora, mas essencialmente uma acompanhante" (posição 90).
As opressões do mundo também estão no espaço acadêmico. É ilusão imaginar que, por uma comunidade se dedicar a pensar, escrever e ensinar sobre as desigualdades, as pessoas que a habitam seriam capazes de eliminá-las. Há misoginia, transfobia, racismo, capacitismo, etarismo, discriminações regionais e de classe (2259).
Sou bastante adepto ao conselho: "pratique a escrita como quem exercita o corpo. As ideias precisam de dedos soltos para fluírem como nossas" (271). Isso funciona. Hoje, escrevo mais fácil do que escrevia há dez anos. Seja em textos acadêmicos ou não, a escrita precisa ser exercitada, para que as ideias e as palavras naveguem mais tranquilamente no circuito que vai do cérebro aos dedos.
Gosto da forma como a autora destaca o caráter coletivo da produção científica e busca se distanciar do ideal do pesquisador gênio solitário. Para Débora, "assim como no mundo comum, na vida acadêmica é preciso exercitar a partilha e a troca, distanciar-se dos ideais – solitários e possessivos – do pesquisador genial de artigos originais e de prêmios internacionais" (326).
Para ela, "abdicar dos possessivos e se acomodar no grupo como parte de um esforço coletivo é algo novo para todas nós e para a prática acadêmica" (332). Concordo.
Débora Diniz traz algumas dicas práticas e funcionais, além de muitas reflexões sobre a relação de orientação e sobre a própria prática da produção científica. Cronogramas, caderno de anotações, esboços, rascunhos, leituras, estudos, solidão, apresentações, revisões, prazer e sofrimento.
Quem já fez um trabalho de conclusão de curso sabe. Não é tarefa fácil, mas tudo depende do orientador, das circunstâncias, da nossa forma de encarar aquele ciclo, do nosso ânimo e de todos os outros fatores envolvidos. Pode ser uma tortura. Uma grande felicidade. Ou ambos.
Não escrevemos ou fazemos pesquisa apenas para a banca de avaliação ou para nossas colegas da comunidade acadêmica – escrevemos para muitas pessoas, sobretudo para aquelas mais impactadas pela questão que investigamos (2550)
Vivendo esse papel de orientador, busco me inspirar bastante no que é colocado por Débora Diniz, imaginando construir, a partir de valores fundamentais, o meu próprio estilo. Nenhum orientador é igual ao outro. Acho que aos poucos vou encontrando meu estilo pessoal e entendendo como posso contribuir de forma mais efetiva.
Já consigo torcer pelos meus orientandos, me preocupar com eles, lembrar dos prazos, dizer que não desistam, que sigam e tentem estabelecer uma rotina. Começo a pensar na semana das bancas, nos leitores, nos trabalhos finalizados e depositados.
Mas busco também lembra-los que não se cobrem demais e não desconsiderem as dimensões intempestivas da vida. Uma coisa é o prescrito. O real são outros quinhentos.
Como diz a autora, "planejamos para que os dias se alterem no curso do vivido. O imprevisto do vivido não pode ser uma barreira para evitar o planejamento, pois sem o calendário você não conseguirá nem mesmo compreender a magnitude do que se comprometeu ao assumir uma monografia, uma dissertação ou uma tese" (1616).
Para quem se interessa pelo tema, é uma boa indicação.
Um grande abraço!
Gostei muito de conhecer a Débora. Já comprei o seu livro "Carta de uma orientadora". Fui orientador por muitos anos e devo voltar aos bancos escolares, como aluno, muito em breve. :)
o saber é sempre uma troca, independentemente dos níveis hierárquicos distintos... quanto mais abertos os dois lados estiverem, melhor é o fluxo.