Um prefácio para Olívia Guerra, de Liana Ferraz
“Acho que essa dor de quem perde a mãe quando criança faz da gente um tipo diferente de ser humano”
Uma criança de apenas oito anos perde a mãe de forma trágica. Sua mãe, escritora e poeta, se torna uma celebridade após a sua morte. Celebridade que não havia sido em vida. A poeta que “voou”* da varanda de sua casa passa ser a idolatrada por uma geração. Canecas, camisetas, agendas, livros e teses acadêmicas. Se, na morte da jovem poeta, surgiu uma artista celebrada, é na morte dessa mesma poeta, antes mãe, que surgiu uma filha que carregará o peso de seu sobrenome por toda a vida.
“Quem diz, evoca. Quem diz, movimenta dentro, fora, vibra. Dizer é acontecer. Escrever é registrar. Dizer é presente. Escrever é passado. Os vivos falam. Os mortos escrevem”
É por meio das palavras de Maristela Guerra, filha da escritora Olívia Guerra, que conhecemos um pouco dessa história. Quando um editor a convida para escrever um prefácio para uma coletânea de poemas inéditos de Olívia, a filha, herdeira do espólio literário da mãe, decide não entregar um prefácio comum, mas um prefácio carregado de emoções, desabafos e amargura.
Maristela busca desconstruir, através de suas palavras, de cartas e trechos do diário de sua mãe, a imagem intocada da poeta admirada, e mostrar sua outra face, de esposa e mãe em permanente inadequação.
“Eu nunca grito. Mas eu sempre ouço o zumbido no peito. Uma bomba quase explode. Sem explodir nem calar nunca. Talvez por isso, toda vez que faço qualquer exame de saúde tenho certeza de que encontrarei um tumor. Um novelo formado em algum lugar escondido. Um grito empedrado, um grito compacto. Não sei se o tumor é um medo ou um desejo. Sim. Essa é a filha de sua autora. Você não me conhece. Prazer.” (p. 45).
Antes mesmo de terminar este livro, já o elegi como um dos melhores dos últimos tempos. É sempre interessante encontrar livros que nos surpreendem, que nos cativam e que apresentam formas distintas de contar uma história.
“Um prefácio para Olívia Guerra” é o primeiro romance publicado por Liana Ferraz, escritora e atriz nascida em Bragança Paulista, em 1982. Doutora em Artes Cênicas pela Unicamp e pós-doutora pela USP, Liana faz um excelente trabalho ao lidar com uma temática tão delicada de forma inteligente, sensível e visceral.
Já falei isso antes, mas alguns autores me geram aquela sensação de “queria tanto escrever bem assim”. É um pouco daquela sensação que muitos da minha geração tiveram ao desejar ter escrito músicas que embalaram nossa juventude, como lembro que pensei ao ouvir “Último romance“, composta por Rodrigo Amarante, da extinta banda Los Hermanos (quem cantou junto, lembra). Bom, recentemente senti isso com Carla Madeira, Socorro Acioli, Paula Gomes e Afonso Cruz.
“alguém precisa me ajudar com a mentira, pois estou inundada de verdade. lúcida desde os oito anos. desanestesiada. vocês podem dizer que querem a verdade, mas a querem por um breve período. como uma visita catártica que não se demora. experimentem conviver com a verdade. estou doente por falta de ilusão. adoeci por excesso de lucidez. enlouqueço por estar sóbria demais para a vida, equipada com uma armadura subcutânea feita de uma trama do fio vertical e certeiro da morte e do fio deitado e implacável da realidade” (p.97)
“Um prefácio para Olívia Guerra” é um livro para apreciar e sentir. A escrita, que alterna estilos, mistura fontes, poemas e formatos, é bastante envolvente. Queremos chegar até o fim, porque é difícil imaginar a dor que Maristela carrega, a dor de ser, como ela diz, “quebrada”, impossibilitada de amar e nascida para a queda.
É um livro que fala de solidão e de ser o que se é, sozinho, por só você saber o que é ser você: “Solidão é um planeta que sempre vai ficar faltando gente” (p. 32).
Liana transmite, na voz de Maristela e Olívia, bastante da experiência feminina, o que, para nós, leitores homens, é um mundo a ser explorado, prepotentes e acostumados que somos à nossa perspectiva única do mundo e da vida. O constante passeio ao passado nos faz entender, aos poucos, como um fato trágico pode delinear o destino de alguém. “A gente desaprende de ser feliz quando cola o presente no futuro” (p. 38).
Por falar de temas relacionados à saúde mental e ao suicídio, é um livro que, de certa forma, contém alguns gatilhos, principalmente para pessoas que já vivenciaram ou vivenciam episódios de depressão e transtornos de ansiedade, seja na própria pele, seja com familiares ou amigos, por mais que toda a escrita nos traga a experiência de forma sensível e bem estruturada.
Recomendo bastante a leitura, que foge do convencional e consegue captar e transmitir a estranha beleza que existe na tristeza.
* Se você pensa ou conhece alguém que pensa em tirar a própria vida e/ou vem passando por dificuldades psicológicas, o Centro de Valorização Vida – CVV realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo de forma voluntária e gratuita todas as pessoas que precisam e querem conversar.
dica anotada! 😉