A perda do que poderia ser dito, feito ou representado
O que poderia nos interessar se a perda não nos interessasse tanto?
Na última semana, Brian Wilson (1942-2025), músico, compositor e gênio por trás de uma das principais bandas de rock de todos os tempos, os Beach Boys, nos deixou. Para quem não conhece, a banda é responsável por um dos melhores álbuns de todos os tempos, na minha opinião e de muitos, o Pet Sounds, lançado em 1966. É nele que conhecemos a otimista Wouldn't It Be Nice e a maravilhosa God Only Knows.
Quando pessoas célebres ou nas quais encontramos algum tipo de referência nos deixam, somos tomados por uma sensação de perda. É comum observar manifestações de luto (um processo normal de reação à perda de algo ou alguém) marcadas pela tristeza. Contudo, à distância, sem uma relação direta com aquele algo ou pessoa, o que perdemos, exatamente?
Geralmente, quando vejo músicos ou atores que gosto nos deixando, penso - antes de sentir - sobre o que eu deveria estar sentindo. Sentir deveria vir antes, eu sei, mas isso é história para outro texto. Meu raciocínio: perdi algo que poderia ser dito, feito ou representado. Não tenho mais a presença daquilo que me dava alguma referência de identidade.
Os discos? As músicas? As fotos? Os vídeos? Estão aí, para que possamos apreciar enquanto durar nossa curta existência. Portanto, é tristeza que sinto? Acho que não. Perdi um pilar de identidade e, talvez, tenha sido lembrado da fragilidade da existência e do passar do tempo. Ele passa. Perdemos. Morremos nós e nossas referências.
Contudo, ficam as memórias. Quando escutei o Pet Sounds pela primeira vez? Onde e com quem estava? Costumo vincular bastante as músicas às pessoas e aos momentos. Lembro exatamente quando escutei algumas músicas e passei a amá-las.
Quem exaltou a beleza desse disco foi um grupo de amigos queridos, há muitos anos atrás, na minha juventude, quando sonhávamos, nós mesmos, ser músicos e compositores de referência para alguém. Isso nos levou a viver, imaginar, criar. É isso que Brian e outros nos proporcionam, mesmo sem saber.
Portanto, como disse a querida
em uma de suas edições secretas, “aprendi que um dos presentes mais valiosos que se pode levar a alguém são memórias”. Como ela diz, “memórias parecem tão voláteis, quebradiças; ainda assim, são os nossos verdadeiros pertences, mais do que qualquer objeto concreto”. Ou seja, “memórias, mesmo as dolorosas (diria que especialmente as dolorosas), nos dizem quem somos”.Dessa forma, quando fico sabendo que alguém que admiro nos deixou ou nos deixará, em breve, não fico triste, principalmente quando sei que isso ocorreu ou ocorrerá já na velhice, aquela fase da vida onde todos, eu acho, esperamos chegar, dado a outra alternativa possível. Me volto ao que essas pessoas criaram. Os seus livros e discos e “nada mais”.
Na última sexta-feira à tarde, escutei o Pet Sounds inteiro, deitado, de olhos fechados. É possível imaginar o contexto de gravação, os detalhes, se atentar aos timbres dos instrumentos, os sinos, as buzinas, as vozes. Isso, pra mim, é honrar a produção dessa pessoa e de outras que nem conheci nesta vida, neste corpo, mas que admiro muito. Para artistas, não vejo homenagem maior.
Recentemente, li Sobre desistir, do psicanalista britânico Adam Phillips. É um livro teórico, penso eu, e voltado, principalmente, a pessoas que já possuem algum contato com discussões na área da psicanálise.
Trata-se de uma coletânea de ensaios, nos quais o autor busca discorrer sobre alguns mitos envolvendo a “desistência” e a “perda”.
“Costumamos enxergar a desistência, de maneira geral, como falta de coragem, como uma forma inapropriada ou censurável de se nortear em relação ao que é vergonhoso e amedrontador. Isso quer dizer que costumamos valorizar e até mesmo idealizar a ideia de levar as coisas a cabo, ou concluí-las, em vez de abandoná-las” (p. 13)
O psicanalista se vale da Literatura, da Filosofia e da Psicanálise para tratar temas como renúncia, sacrifício e abandono, questionando a ideia de que “desistir” é sempre algo negativo ou sinal de fraqueza.
“Não conseguir desistir é ser incapaz de aceitar a perda, a vulnerabilidade; ser incapaz de aceitar a passagem do tempo e as revisões que ele traz” (p.30)
Afinal, se vinculamos “perder” ou “desistir” sempre a algo inadmissível, como trataremos essa opção como uma possibilidade?
“Torturamos pessoas quando obrigamos a continuar vivendo aqueles cuja vida é uma tortura” (p.26)
Além disso, Adam Phillips pergunta: “como sabemos se estamos vivendo?”. Aliás, “como saber se estamos vivos?”.
Para o autor, ao citar o também psicanalista Donald Winnicott, “parece estranho pensar que podemos nos esquecer de nossa vitalidade – do fato de estarmos vivos –" (p.49), contudo, se estamos voltados apenas à nossa sobrevivência e ligados à negação da perda ou da possibilidade de interromper algo, podemos, sim, esquecer de viver.
O livro é muito interessante e, para mim, foi uma leitura densa e reflexiva. A exclusão e a censura são elementos base da nossa constituição subjetiva. Me senti como na imagem abaixo, portanto não trarei as citações.
Trago mais duas, daquelas pra ficar pensando: “O que nossas crenças mais adoradas nos protegem de conhecer ou de reconhecer?” (p.124). Afinal, “é pressuposto da censura que preferimos a segurança ao perigo, o fechamento à abertura, o familiar ao estranho” (p.145).
Por fim, “vale a pena se perguntar: a quem acreditamos que devemos justificativas quando desistimos ou quando decidimos resolutamente não desistir?” (p.14).
Antes de fechar, comecei a ler Sem tempo a perder: reflexões sobre o que realmente importa, da escritora estadunidense Ursula K. Le Guin (1929-2018), conhecida mundialmente por seus livros de ficção científica (já comprei os dois mais famosos). Influenciado pela
, estou gostando bastante dos textos.Basicamente, o livro é uma coletânea de ensaios para o público geral, publicados em seu blog, iniciado em 2010, quando a autora tinha 81 anos, em parte inspirada por experiência semelhante do escritor português José Saramago (1922-2010). São textos sobre temas diversos, mas aparentemente marcados por um mesmo contexto: a experiência do envelhecimento.


Por aqui, está frio. O fim do semestre letivo se aproxima, o que traz um misto de felicidade e alívio. Os quarenta anos se aproximam. Fui ao show do Wilco, em São Paulo. Eles são sensacionais. Tenho desenhado um pouco mais. Tenho tocado bateria com um pessoal querido, toda semana. Sempre Beatles, basicamente. Quem sabe volto aos shows, em breve? Um abraço!
quando uma referência se vai, tenho a impressão de que perdemos também um futuro possível: o que aquele músico, autor ou ator ainda poderia fazer? que outras obras poderiam surgir? jamais saberemos, o que torna a perda um pouco mais dolorida. dói, ainda, especialmente mais quando quem se vai ainda é jovem, teria - pela lógica do tempo - mais futuro do que passado.
Anotadas as dicas de leitura!