Eu traí o meu barbeiro
Corta a cena para o meu barbeiro chorando em casa, sozinho, ouvindo Roberto Carlos e segurando a minha foto, enquanto afoga as mágoas num copo de uísque
Recentemente, traí o meu barbeiro. Homem que é homem (essa expressão inquestionavelmente dúbia e ultrapassada) sabe que não se troca de barbeiro de uma hora pra outra. É preciso cálculo. Sabe-se muito bem que a relação entre um homem e o seu barbeiro é mais sagrada que casamento.
Desde que me entendo por gente, sempre cortei o cabelo com o Nelson, o barbeiro que o meu pai frequentava. Da época que um corte masculino custava dez reais. Lembro como se fosse hoje das nossas primeiras idas. Eu ainda era chamado de Driguinho.
Eu e meu irmão alternávamos a cadeira de salões que funcionaram em diferentes imóveis na região do bairro Horto, em Belo Horizonte.
Nelson se orgulhava de cortar o meu cabelo com a tesoura “como se fosse com a máquina” 💇♂️. Ao terminar, admirava orgulhoso a sua obra. “O pessoal não te pergunta se passou máquina?”.
Eu dizia que sim. “Se falar que foi na tesoura, ninguém acredita”, ele mesmo respondia. Eu concordava. Estava ali a satisfação de um trabalho bem feito, com afeto e perícia, com certeza.
Foram mais de duas décadas de fidelidade, entre idas e vindas, até que o querido Nelson partisse desse mundo, com sua cabeleireira acaju 👨🏽🦰, seu relógio brilhante e sua camisa com alguns botões abertos.
É interessante como algumas figuras marcam a nossa vida.
Sua sucessora e aprendiz (e futura influencer) herdou naturalmente os seus clientes, mas o luto foi sendo trabalhado em cada cliente à sua maneira, e lá estava eu, buscando um novo barbeiro pra chamar de meu.
Não era a mesma coisa. Os tempos de Nelson haviam passado.
É aí que entra o meu barbeiro atual, o marido traído.
O cargo vitalício foi ocupado somente em meados de dois mil e dezenove, quando experimentei uma barbearia que ficava próxima à minha casa na época, por indicação de um amigo. Foi lá que eu conheci essas barbearias modernas onde se toma cerveja e praticamente nos sentimos em um pub de rock 🍻. Não estava acostumado com isso.
O Nelson era rústico, afinal. Rádio Itatiaia tocando no fundo, um bom jornal impresso na mesinha ao lado das poucas poltronas gastas. No máximo, uma água de filtro de barro. A porta de metal daquelas que fecham pra cima se enrolando.
O “substituto” do Nelson é o Dan. Consideravelmente mais jovem, o “Dan Cabelo”, como ele se chama na minha agenda, ganhou meu coração (e a minha fidelidade, pelo menos até setembro de dois mil e vinte e quatro, quando pulei a cerca 💔).
Ele me deu um corte mais moderno e jovem, mas não a ponto de ser ridículo. Desde então, foram muitas idas ao salão, conversas sobre bateria, casamento, trabalho e cabelo, naturalmente.
Porém, tudo estava prestes a mudar (suspense).
Tudo aconteceu em um fim de semana quente de setembro. Lá estava eu, serelepe, voltando do mercado, sentindo meu cabelo atingir o tamanho necessário para agravar a sensação de calor na proximidade das orelhas e da nuca. Algo precisava ser feito.
A barbearia que fica ao lado da minha casa estava ali, olhando pra mim, me convidando a adotar a opção mais cômoda, já que o meu barbeiro original (o Dan) está localizado numa região da cidade que, há alguns anos, já não tem nada a ver com a minha rotina. Segui indo lá por pura preguiça lealdade.
Cansado, suado e otimista, adentrei o novo estabelecimento e perguntei:
- “Tem horário pra corte hoje?”
O aparente dono do local abriu um sorriso nervoso e me informou que só atendiam com agendamento, indicando um cartãozinho no balcão, ao que respondi que agendasse então, ora bolas. Se eu não quisesse agendar, não estava perguntando.
Eram 10h da manhã. Eu retornaria às 13h.
Hora vai, hora vem, lá estava eu. O rapaz, que chamaremos de Ramon, pediu que eu sentasse na cadeira e ficasse confortável.
- “O que faremos hoje?”, disse ele me encapando com aquelas capas que apertam o pescoço.
Antes que eu pudesse responder, o meu corpo começou a vibrar.
- “Uai, rola uma massagem?”, perguntei.
- “Sim, quer que pare?”.
- “Não, pode deixar”, assenti, ainda entendendo que a cadeira ofertava, além de um assento, uma massagem.
Massageado pela cadeira tecnológica do Ramon, me senti cometendo um crime ao explicar como deveria cortar o meu cabelo. Parecia que eu estava no motel com uma amante.
Expliquei. Máquina um, dois e três ali, degradê, tesoura lá, foto aqui.
- “Ok, entendido”, disse Ramon.
O amante, que buscava demonstrar suas habilidades, foi de poucas palavras. Só se pronunciou quando pedi que a massagem parasse, porque eu estava suando e já não sentia mais a minha coluna.
Cabelo cortado. A princípio, parecia igual.
Pensei no meu barbeiro perguntando:
- “E como foi com ele?”, tal qual uma esposa acusa o marido ao descobrir uma traição. Eu responderia, como adúltero: “diferente”.
Os dias se passaram e percebi que o corte não estava tão bom, mas ok. Ramon quebrou o galho. Era mais barato, do lado de casa. Daqui a pouco cresce. Vida que segue.
Um mês e meio depois, decidi dar mais uma chance ao “outro barbeiro”. A nossa relação chegava ao segundo encontro.
[Corta a cena para o meu barbeiro chorando em casa, sozinho, ouvindo Roberto Carlos e segurando a minha foto, enquanto afoga as mágoas num copo de uísque]
Adentrei o estabelecimento no horário agendado.
- “Dessa vez, sem massagem”, avisei.
Ramon acatou a preferência e pronunciou:
- “E hoje, o que faremos?”
Posso dizer que nossa recente relação começou a se desfazer quando eu disse:
- “Hoje quero ele mais curto do que da outra vez”.
Ingenuidade minha. Ramon, como um bom prestador de serviços obediente, não hesitou.
- “Ok, podemos passar a máquina três então?”.
Eu, confiando no bom senso do profissional, que eu saberia inexistir posteriormente, respondi de modo afirmativo. “Manda ver", disse eu, em silêncio, com um aceno de cabeça.
Foi isso. Enquanto assistia a um jogo da liga espanhola numa televisão de qualidade duvidosa, lá estava eu, parecendo a Carolina Dieckmann ao ter o cabelo raspado em Laços de Família.
Ramon, de forma impiedosa, lançou a máquina três, iniciando o circuito, tal qual um cortador de grama, na minha testa, em direção à nuca.
Em poucos segundos, havia adquirido um corte moicano ao contrário. Tive meu cabelo devastado como uma floresta desmatada em poucos minutos.
Parecia que eu tinha acabado de ingressar no exército ou no presídio. Nem acabamento teve. O Ramon nunca mais me veria.
Os dias que se seguiram foram marcados por olhares curiosos e um desejo pessoal de que meu cabelo crescesse rápido.
Hoje, dia treze de dezembro de dois mil e vinte e quatro, voltei pro Dan, tal qual um cão arrependido. Que se exploda a logística. O cabelo tem razões que a própria razão desconhece.
Cheguei contando minha triste história. Rimos. Nos abraçamos. Meu barbeiro me aceitou de volta na casa dele. Que sejamos felizes para sempre, até que a morte nos separe.
Um abraço e até a próxima!
Kkkkkkkk Rodrigo, adorei a história. Dei boas risadas aqui! Acho engraçada essa relação do homem com o barbeiro. Eu tenho um primo que só vai ao barbeiro quando sente sua masculinidade indo ralo abaixo. É oportunidade que ele tem de lembrar que é homem, eu morro de rir.
Feliz Natal, Rodrigo! ✨
Antes de chegar no final já estava até pensando em te passar uns locais aqui do bairro Pompeia...rsrs. Acho que você sentiu na pele o que nós mulheres passamos em ser sempre fiéis aos nossos cabelereiros. Eu já percorrí Belo Horizonte inteiro atrás de uma que com o tempo foi deixada pelo mau humor da própria.