Me sinto atrasado
“Estou atrasado, muito atrasado…”, dizia o coelho. Estou lendo newsletters o suficiente?
Na verdade, sou bastante pontual. Até demais, às vezes. Chego antes para evitar atrasos. Como pessoa pontual que sou, odeio os atrasados. Falta de respeito, desleixo e falta de comprometimento, para dizer o mínimo. Ah, o ódio de quem chegou antes e ficou esperando.
Mas não é desse atraso que quero falar. Me sinto atrasado na vida. Sintoma de uma geração? Talvez. Estamos sempre correndo atrás de alguma coisa que parece demorar demais para chegar. Ainda não fiz o suficiente.
Não posso dizer que demorei para “conquistar” as coisas e preencher o gabarito. Tirei carteira de motorista no tempo esperado, namorei, tive banda, fiz muitos shows, me formei cedo na faculdade, entrei cedo em um cargo público, fui morar sozinho, noivei, casei, tive cachorro, separei, “mestrei”, “doutorei”, virei professor.
Tudo isso daí até meus atuais 39 aninhos (com cara de 36). Dentro do esperado ou até mais do que o esperado para o meu contexto “classe média de capital branco heterossexual sem grandes dificuldades sociais para enfrentar”.
Ok, mas ainda atrasado.
Quem lembra do livro que a Mônica estava começando a escrever? “Além do óbvio ululante que pulula nas mentes humanas”. Na historinha intitulada “Complicado demais”, publicada na Mônica n° 127, Editora Globo, julho de 1997, o enredo começa com o Cascão chegando perto de uma Mônica sentada debaixo de uma árvore, irritada e rasgando papéis em uma prancheta.
Questionada sobre o que estava fazendo, a personagem, após dar um grito básico, diz que viu um homem na televisão que disse que para ter uma vida completa, você precisa plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro.
Dito isso e, diante da impossibilidade de ter um filho, de imediato, ela planta uma árvore e começa a escrever o livro. O título? Além do óbvio ululante que pulula nas mentes humanas. Nada tão complicado que o Do Contra não pudesse explicar.
Por sorte, alguma alma caridosa colocou essa história no YouTube e, caso você ainda não conheça, recomendo bastante. Marcou uma geração. Pode me dar a revistinha de presente.
Se eu partisse da perspectiva do “homem na tevê”, minha vida teria sido um parcial fracasso, até o momento. Posso dizer que escrevi o livro. Primeira parte executada com sucesso ✅. Mas ainda não plantei a árvore e nem tive filhos (pelo menos, não que eu saiba. Filho(a), se você me lê, faça contato). 🛑
Ou seja, uma vida nem um pouco completa. Histórias em quadrinhos à parte, me sinto atrasado porque, quando nos comparamos a outras pessoas e a outras gerações, parece que não fizemos quase nada, a não ser curtir a vida e sobreviver.
Estou com quase 40 anos e ainda me sinto um jovem, ainda que o corpo não concorde sempre.
Negação? Talvez. Mudança na percepção social do que é velho e do que é novo? Talvez também. Maior expectativa de vida? A vida começa aos quarenta, como dizia Walter Pitkin? Pode ser tudo isso.
Veja bem: com a minha idade, meus pais já eram pais de dois projetos de rapazes, já tinham “vencido na vida” e estavam lá, dando um duro danado para cumprir o suposto protocolo da vida adulta. Carro, casa, filho, outro filho, cachorro, viagem, trabalho. O pacote completo. Tudo isso, sem internet e smartphones.
Claro, épocas diferentes, gerações diferentes, mas sinto que, até aqui, por muitas vezes, me guiei por um manual imaginário do que deveria ser feito. É provável que isso seja um sintoma da minha geração, os millennials, sempre atrasados, sentindo que precisam formar, trabalhar, noivar, casar, ter casa própria, ter um carro, ter um filho. Ser um “adulto completo”.
Terminar a primeira maratona 🏃♂️. Correr os seus primeiros 5, 10, 20, 30km. Fazer um mochilão. Tirar um ano sabático. Aprender a meditar. Visitar o Japão 🥋. Ser um profissional bem sucedido. Ter uma casa na praia ou no campo. Saber degustar um bom vinho, um bom café e fazer sua própria cerveja artesanal 🍺. Mudar de país.
A lista do que “deve ser feito o mais rápido possível” não acaba. E eu diria que não somente feito, mas postado, compartilhado e curtido.
Eu diria, ainda, que, em tempos de redes sociais como as conhecemos até hoje, é difícil não se sentir atrasado.
É difícil não sentir que você não está sendo feliz o suficiente, não é popular o suficiente, não está viajando o suficiente, se exercitando o suficiente, curtindo a vida o suficiente, lendo o bastante, amando o seu trabalho como deveria, sendo romântico como poderia, cultivando família e amigos como deveria.
Enfim, onde deixei o sossego e a paz de espírito por ser o que sou, estar onde estou (não falta ninguém, Rita Lee), ter o que tenho e fazer o que faço? Posso ter deixado cair em alguma esquina.
Na impossibilidade de recupera-lo (não dá voltar pelos labirintos do passado, correndo o risco de se perder), venho cultivando um novo sossego, um novo modo lento de ser, pensar e agir, na medida do possível e da sobrevivência.
Outro dia, vi por aqui uma citação do saudoso Milan Kundera que reproduzo por sua beleza:
“Nesta terra, as pessoas não respeitam a manhã. Acordam brutalmente ao som de um despertador que lhes rasga o sono com uma machadada e entregam-se logo a seguir a uma pressa funesta. É capaz de me dizer o que será depois um dia que começou com semelhante acto de violência? Que será feito dessas pessoas a quem o despertador ministra diariamente um choquezinho eléctrico? De dia para dia, vão-se habituando mais à violência, cada vez mais esquecidos do que seja o prazer. Pode crer-me , o temperamento de um homem é decidido pelo que forem as suas manhãs.” ― Milan Kundera, A Valsa dos Adeuses
Não sou rápido, nunca fui. Desnaturalizaremos a pressa. Se me sinto atrasado para algo, atualmente, é para viver mais devagar. Aceito, cada vez mais, estar atrasado. Ando de braços dados com o coelho, que agora deixou o grande relógio pra trás.
Um abraço e até a próxima!
tenho a sensação de que as redes sociais pioraram muito esse sentimento de atraso, porque todo mundo parece levar uma vida perfeita e ativa em um nível que nós - meros mortais - jamais atingiremos. desde que me retirei delas, sinto o tempo passar em um compasso mais equilibrado, sem ter uma série de stories e reels e posts para me dizer que eu deveria estar me divertindo mais, produzindo mais, trabalhando mais, me esforçando mais… mais… mais… mais! a máxima de que “o músculo cresce no descanso” vale também como metáfora de quem somos: precisamos de tempo para crescer.
tem um episódio de um desenho animado (Bob Esponja, no caso) em que a personagem diz estar "atrasada para chegar cedo". acho uma metáfora fantástica