Muito bem, disse o pai, compramos um poeta. De que tamanho?
Se eu pudesse definir este livro de Afonso Cruz, o definiria como “um belo conto prolongado manifesto”. É engraçado dizer isso, mas, no início de fevereiro, sinto que já li o melhor livro do ano. Posso me surpreender (e parecer “emocionado”), mas “Vamos comprar um poeta“, é um dos livros mais interessantes e bonitos que já li.
Primeiramente, vamos ao autor. Afonso Cruz é português, nasceu em 1971, é escritor, ilustrador, designer e músico. Publicou mais de trinta livros e recebeu alguns prêmios por sua obra. Não o conhecia, até então, e vi a indicação no perfil do Pedro Pacífico (@book.ster), que é também escritor e influencer literário, e sobre o qual já falei por aqui, ao comentar o livro “Trinta segundos sem pensar no medo“.
“Vamos comprar um poeta” foi publicado originalmente em 2016, em Portugal, pela Editorial Caminho, e depois por aqui, em 2020, pela Editora Dublinense. Não é preciso dizer que o nome é bastante instigante. Trata-se, basicamente, de uma história situada em uma sociedade materialista, que contabiliza e patrocina tudo, onde a troca de afetos é medida com exatidão e a beleza e a arte, por exemplo, não têm lugar e são vistas como coisas inúteis. Nesse cenário, onde as famílias têm artistas ao invés de animais de estimação, uma menina pede ao pai um poeta.
Diante disso, temos até argumentos supostamente científicos: “Há muitos estudos que afirmam que ter um artista, um bailarino, um ator, ou mesmo um poeta, ajuda a combater o stress, a baixar o colesterol mau, o que nos torna cidadãos e profissionais mais produtivos, concentrados e eficazes. Ora bem, nada mais útil do que isso” (posição 224).
Afonso Cruz conduz a história com muita criatividade, fazendo com que um enredo aparentemente simples, nos traga lições importantíssimas sobre nossa forma de viver em sociedade e sobre a nossa relação com a arte e a beleza. É uma leitura rápida, de poucas horas, mas que promete ficar na cabeça do leitor por muito tempo. É, acima de tudo, uma crítica inteligente ao utilitarismo e à nossa forma de enxergar o papel da arte no mundo.
Em um momento do livro em que convidados da família que havia adquirido um poeta se reúnem para um jantar, com o objetivo de conhecer aquela nova atração, temos o seguinte trecho: “Pena que esse trabalho não sirva para nada. Não se podia fazer com que uma empresa de exploração mineira os contratasse?, perguntou o convidado 6. Não conseguem trabalhar. Têm aquela doença, respondeu o meu irmão” (posição 181).
Para mim, não se trata somente do enredo, mas forma de transmiti-lo. A própria escrita incorpora a natureza materialista daquela sociedade, ao trazer quantidades dos afetos e das coisas, com exatidão, e desconsiderar características “subjetivas”, ao nomear, por exemplo, os convidados do jantar apenas de um, dois ou três, porque, dizer mais do que isso, não importa.
O interessante é que a própria narrativa vai se modificando ao longo do livro, na medida em que a menina vai se “contaminando” com a presença do poeta em sua vida e na vida da família. É como se a beleza penetrasse nas formas de ser e viver das pessoas e elas, aos poucos, se vissem, de repente, incorporando a poesia em sua vida. É como diz a mãe, em um dos diálogos já “contaminados” pelo poeta: “As rugas são as cicatrizes das emoções que vamos tendo na vida” (posição 634).
Eu mesmo que, até hoje, nunca fui muito fã de poesia, comprei uma coletânea de poemas do Carlos Drummond de Andrade, logo depois que finalizei a leitura. Lendo algumas, estou mudando de opinião aos poucos. E ler uma crítica ao utilitarismo é também bastante interessante pra mim, que tenho a tendência a me perder na ideia de que preciso ocupar meu tempo apenas com coisas “úteis”, “produtivas” ou que gerem algum valor financeiro. Que não posso apenas “perder tempo” com algo qualquer, mas que me traga “apenas” prazer ou satisfação. Ah, terminei este livro na praia, de férias. Ótimo.
Completando o seu objetivo de que o livro não seja só uma história divertida, mas um manifesto, Afonso Cruz traz um apêndice onde contextualiza a experiência e, inclusive, fundamenta alguns de seus argumentos com dados da realidade. Como bem resume Pedro Pacífico, em sua resenha sobre o livro, o escritor “fecha a obra com chave de ouro, revelando ao leitor a importância da arte e cultura para o desenvolvimento de uma sociedade mais humana”.
Deixo aqui alguns trechos que destaquei ao longo da leitura.
“Sem metáforas, por exemplo, não é muito interessante falar. Eu posso dizer que uma janela é uma janela, mas isso já toda a gente sabe. Com a poesia posso dizer que uma janela é um bocado de mar ou uma cotovia a voar” (Posição 652).
“O pai levantou os braços enquanto a cadeira voava na sua direção. Poesia: a cadeira não lhe acertou, mas o efeito de ter sido atirada ficou indelevelmente gravado na face do pai” (Posição 673).
“Nunca abandonei aquele poeta, ainda o visito no parque. Não sei quantas pessoas ainda visitam os seus poetas abandonados, mas se procurarem bem, há muitos parques cheios deles, dentro e fora de nós” (Posição 722).
“A poesia, diz-me ele, transfigura o universo e faz emergir a realidade descrita com a absoluta precisão da ambiguidade. Nunca li um bom verso que não voasse da página em que foi escrito. A poesia é um dedo espetado na realidade. Um poeta é como quem sai do banho e passa a mão pelo espelho embaciado para descobrir o seu próprio rosto” (Posição 726).
“O poeta dizia que os versos libertam as coisas. Que quando percebemos a poesia de uma pedra, libertamos a pedra da sua ‘pedridade’. Salvamos tudo com a beleza. Salvamos tudo com poemas. Olhamos para um ramo morto e ele floresce. Estava apenas esquecido de quem era. Temos de libertar as coisas. Isso é um grande trabalho. Sei que muitas mudanças na minha vida aconteceram graças a ele. Por isso, jamais deixarei de me sentar ao seu lado, com metáforas na garganta, a trocar inutilidades. E, antes de me deitar, repito a oração que aprendi com o poeta: Tenho milhas a percorrer antes de dormir” (Posição 732).
“Ao contrário de Keynes, o filósofo francês não sonhou com alegados e nobres propósitos utilitaristas, porque ‘o capitalismo não tem nada a ver com o desejo de melhorar a condição humana’. Só à primeira vista parece ter ‘por objetivo a melhoria do nível de vida’, mas trata-se de uma ‘perspetiva enganosa’. De facto, ‘a produção industrial moderna eleva o nível médio sem atenuar a desigualdade de classes e, em definitivo, só por casualidade reduz alguma injustiça social’”. (ordine, nuccio, La utilidad de lo inútil) (Posição 749).
“É na inutilidade que está o altruísmo e aquilo que o ser humano considera naturalmente mais nobre” (Posição 759).
“‘Este processo mental é o mesmo do da poesia… A essência é a mesma. O que demonstra que a fonte do pensamento científico não é a razão, mas a verificação exata de uma associação originalmente fornecida pela imaginação’” Posição 773.
“A verdade é alcançada por saltos imaginativos. Isto aplica-se tanto à ciência como à filosofia”. (simon, leys, The hall of uselessness: collected essays) (Posição 780).
“Os animais nascem com a verdade, com uma sólida realidade que lhes deixa um reduzido espectro de aprendizagem; nós nascemos com menos verdade, com menos realidade, mas com possibilidades, com as armas imponderáveis da ficção: criamos” (Posição 807).
não conhecia o livro e, desde o título, fiquei curioso para ler.