A morte é um dia que vale a pena viver, de Ana Cláudia Quintana
“As pessoas morrem como viveram. Se nunca viveram com sentido, dificilmente terão a chance de viver a morte com sentido”.
Você pensa sobre a morte? Mais particularmente, a sua própria morte? Já conversou sobre isso com familiares, amigos ou companheiros? É bastante provável que não. Pensamos muito em aproveitar a vida, ter tempo para fazer tudo o que queremos, curtir a nossa juventude. Nos aniversários, sempre desejamos felicidades, saúde e uma vida próspera. Contudo, pouco pensamos sobre a finitude da existência, comum a todos nós e (quase) sempre, imprevisível.
O trecho que destaquei no início deste texto é, talvez, um dos mais belos e que mais representam o livro escrito por Ana Claudia Quintana Arantes, que, em suas palavras, é “médica, escritora, professora e palestrante em temas sobre envelhecimento e morte – e a vida que preenche o espaço desses momentos humanos”.
Ana Claudia Quintana Arantes é médica geriatra formada pela USP e atua com Cuidados Paliativos. De acordo com Ribeiro e Poles (2019), “cuidado paliativo é uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio do alívio do sofrimento, tratamento da dor e de outros sintomas de natureza física, psicossocial e espiritual”.
Desde que li alguns livros mais relacionados a temas da Psicologia e à vida, de modo geral (como “Talvez você deva conversar com alguém“, “Toda ansiedade merece um abraço” e “Nação dopamina“), este livro vinha rondando as minhas recomendações. “Talvez você se interesse”, diziam os algoritmos. Eu, particularmente, gosto dessas recomendações, porque, diante da oferta gigantesca de livros que temos hoje, as dicas que chegam ate nós, baseadas em nossos hábitos de leitura, podem ajudar. Fazemos um filtro ali, ponderamos avaliações, sinopses, comentários e pronto, vamos acrescentando títulos à nossa lista.
Foi assim, portanto, que cheguei a “A morte é um dia que vale a pena viver: e um excelente motivo para se buscar um novo olhar para a vida“. O título, que é quase um resumo, descreve bem a proposta da obra. Mais do que falar sobre a morte de uma forma honesta, simples e corajosa, Ana fala sobre a vida e sobre a importância de sermos protagonistas de nossa história e vivermos uma vida com sentido. Para isso, a autora questiona alguns valores do senso comum e critica a postura da própria medicina diante da morte.
Podemos dizer que falar sobre dor, sofrimento e morte não é algo “bem visto”, nem muito popular. É como se, ao falar disso, estivéssemos atraindo isso para nós. Contudo, ao não falarmos da morte ou discutirmos essa “certeza única e absoluta da vida” no almoço de domingo com nossos familiares ou no bar com nossos amigos, como diz a autora, estamos negando sua existência e perdendo a oportunidade de colocar a nossa própria vida em perspectiva. Como diz a autora, “todas as pessoas morrem, mas nem todas um dia poderão saber por que viveram” (posição 646).
Para Ana Claudia, as pessoas praticam uma ingenuidade o tempo todo com a própria vida, ao pensar que “se eu não olho para a morte, ela não me vê. Se eu não penso na morte, ela não existe.” As pessoas pensam que são eternas. Segundo a autora, “por causa dessa ilusão, levam a vida de modo irresponsável, sem compromisso com o bom, o belo e o verdadeiro, distanciadas da própria essência” (posição 660).
Ao dizer sobre uma metáfora que coloca a nossa morte como se fosse um grande muro, definitivo e instransponível, a autora enfatiza que “o que norteia nosso caminho e nos impele a fazer boas escolhas é a certeza de que, quaisquer que sejam nossas escolhas, o muro nos aguarda” (posição 861). De certa forma, o livro traz algumas “dicas”, se podemos chamá-las assim, para se viver uma vida com sentido. Além disso, para mim, trouxe uma nova perspectiva de como lidar, eventualmente, com pessoas que se encontram diante da morte ou enfrentando alguma doença grave, como algo concreto e inevitável, no futuro próximo.
Pensar sobre a morte, sobre o nosso envelhecimento e sobre a nossa finitude, é pensar sobre a nossa vida, o nosso tempo, as nossas relações, as nossas escolhas pessoais e profissionais. Enfim, é refletir, de forma construtiva, sobre como estamos passando o nosso tempo aqui na terra. Gosto da definição da autora, que ressalta que “o ser humano é a única espécie na Terra que é definida por um verbo” (posição 683). Sim, não “somos”. “Estamos sendo”. Aqui e agora. Tudo, absolutamente tudo, menos a certeza da morte, é passível de mudança.
Ao embarcarmos nessa vida, é como se entrássemos em um vagão de trem ou do metrô. Estamos indo para algum lugar. Todos nós. Para Ana Claudia, “para muitas pessoas, a vida é como estar no metrô com os olhos vendados: elas entraram em um lugar que não sabem direito onde fica, não sabem onde vão descer e não estão presentes! Simplesmente estão dentro” (posição 618). Uma das principais reflexões que fiz durante a leitura é que não quero ser uma dessas pessoas.
Não se trata de dar um peso excessivo às nossas decisões ou entrar em um modo “aproveitar a vida como se não houvesse amanhã”. Trata-se de pensar, sempre: “o que estou fazendo com o meu tempo?”. Não quero estar ausente na minha própria vida. Gosto de pensar que “conseguiremos lidar bem com a morte no dia a dia se pararmos de viver felizes somente no futuro” (posição 1456).
A experiência trazida pela autora ao lidar no cuidado de pacientes terminais é preciosa. Imagino que, lidar com pessoas no fim da vida, traga um conhecimento e uma sensibilidade ímpares. Para Ana Claudia, a “certeza” ou a “proximidade da morte” trazem uma experiência diferente, certa lucidez, uma capacidade aumentada de ver e analisar a realidade, a própria trajetória e as pessoas. Isso faz com que a gente reavalie uma série de coisas, busque “resolver” algumas questões pendentes e vivencie uma experiência singular.
Como ressalta a autora, “o sofrimento […] é algo absoluto, único. Totalmente individual. Podemos ver as doenças se repetirem no nosso dia a dia como profissionais de saúde, mas o sofrimento nunca se repete” (posição 352).
Ainda sobre o cuidado, o livro ressalta a importância do autocuidado para que possamos cuidar de outras pessoas. Para a médica, “todo o trabalho de cuidar das pessoas na sua integralidade humana só poderia fazer sentido se, em primeiro lugar, eu me dedicasse a cuidar de mim mesma e da minha vida” (posição 336). Para nós, profissionais da saúde, isso é sempre um recado fundamental, ainda que esquecido por muitos.
Em síntese, Ana Claudia diz que “talvez o jeito mais fácil de viver bem seria incorporar no nosso dia estas cinco nuances da existência: demonstrar afeto, permitir-se estar com os amigos, fazer-se feliz, fazer as próprias escolhas, trabalhar com algo que faça sentido no seu tempo de vida, e não só no tempo de trabalhar. Sem arrependimentos” (posição 1397).
Na minha opinião, uma das melhores leituras do ano. Recomendo. Estou bastante curioso quanto aos outros livros da autora, particularmente “Pra vida toda valer a pena viver: Pequeno manual para envelhecer com alegria” e “Histórias lindas de morrer”. Enquanto não chego neles, vou acompanhando os artigos no site da autora.
Referências
RIBEIRO, Júlia Rezende; POLES, Kátia. Cuidados Paliativos: Prática dos Médicos da Estratégia Saúde da Família. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v. 43, n. 3, p. 62-72, jul./set. 2019.
a própria finitude é um assunto que ninguém gosta muito de pensar e é difícil encontrar quem consiga falar do tema sem o peso do tabu.