Algo definitivo, tal qual uma estátua de bronze
“Existe uma parte de todos nós que vive fora do tempo. Talvez só tomemos consciência da nossa idade em momentos excepcionais, na maioria do tempo não temos idade”
Outro dia, me peguei pensando sobre a nossa insignificância diante da história do universo. Sim, tenho devaneios ao estilo Charlie Brown (não a banda, o desenho).
Nos últimos anos, com a “crise” dos quarenta que se aproxima (talvez já esteja nela), me percebi, sob um ponto de vista realista, na “metade da vida”. Isso considerando que irei superar a expectativa de vida média no Brasil.
O que tiver sido a metade, de fato, só descobriremos quando já sentados em nossa suíte no céu - ou no porão do inferno, a depender do leitor.
Não é que eu pense que o tempo passou rápido até aqui, mas não passou devagar. A despeito da conhecida constatação de que a vida passa depressa, é interessante pensar na vida como uma linha que vai de A até B, como aquelas das aulas de física.
De forma não simultânea ao momento em que tomamos consciência de nossa existência (que pode vir aos quatro, dez, trinta ou oitenta anos - ou nunca), o ponto A marca o surgimento desse indivíduo no planeta. O ponto B, notoriamente, marca o nosso sumiço do mesmo mundo.
Fim da linha. Terra, cinzas, morada do Senhor, tridente do tinhoso, o que for.
O que acontece entre A e B você já sabe: é uma bagunça. Um misto de prazer, sofrimento, alegria, tristeza e toda sorte de eventos. Tem gente que dura pouco (ou nem chega a durar). Tem gente que dura muito (até demais, às vezes). Tem gente que só dura, na medida certa.
O meu ponto aqui, contudo, não é esse. Partindo do pressuposto de que somos insignificantes, que marca deixamos no mundo? Fotos, vídeos, livros, cartas? Memórias, histórias, saudades, traumas? Legados tecnológicos e/ou artísticos?
A diversidade de possíveis ingressos para entrar na fila da imortalidade é grande.
Caso eu não tenha filhos - nem adote um ou nada do tipo -, qual será a marca da minha continuidade no mundo? A minha dinastia termina comigo? Ninguém vai herdar tanto talento? (ok, parei por aqui)
Milan Kundera, escritor tcheco famoso por A insustentável leveza do ser, já pontuava, em seu sexto romance (A imortalidade), que “o homem pode por fim à sua vida, mas não à sua imortalidade.” Profundo, né?
Pensemos na fotografia, por exemplo, hoje tão comum e democrática. Ela é apenas uma manifestação moderna de um hábito primitivo do ser humano de tentar capturar a realidade, produzir a sua autoimagem e combater a finitude.
Uma busca pela imortalidade do que já fui ou estou sendo.
É curioso pensar como a presença, em nossa contemporaneidade, de um passado filmado e fotografado, cem por cento disponível na nuvem (não aquela nuvem onde fica a sua suíte no céu), na palma da sua mão, pode trazer uma diferença na relação que experimentamos com o tempo.
Abro meu celular e lá está, a minha formatura do ensino médio em 2003, tomando um sorvete de morango e flocos na pizzaria mangabeiras. Meus pais ao lado, ainda sem cabelos grisalhos. Meu irmão ali, tomando uma coca light. Nenhum celular. Todos vivendo o momento.


Abro o celular, mais uma vez, e lá estou, sentado no parque municipal com dois amigos queridos, rindo de alguma coisa, em uma tarde qualquer de um tempo já distante.
E por aí vai. A nuvem de armazenamento não nos deixar esquecer do passado.
Sim, a foto nos traz algum grau de imortalidade e, uma vez inserida nesse fenômeno tão novo e maluco que é a rede mundial de computadores (vulgo internet), ficará lá para sempre, para quando os alienígenas vierem.
A foto pode ser quase um grito de protesto pro universo, que insiste em nos lembrar da nossa finitude, ainda que esses gritos, muitas vezes, soem como uma mera autoafirmação, parecido com a Xuxa, cantando, em 1987, que era feliz, era feliz, e quem tomava conta e mandava nela era o próprio nariz. Hoje sabemos que não era bem assim (alô, Marlene).
Contudo, talvez sua principal função seja nos ajudar a compor a nossa memória de uma vida linear, coerente (ou não) e com sentido, por mais que nunca seja tão fácil assim.
Portanto, a foto é efêmera e enganosa. Ela desbota, se rasga, se decompõe. Ela some, se perde na troca de aparelhos de celular, de computadores, de mudanças de formatos de mídia. Promessa efêmera de imortalidade. Assim como este texto.
Nesse sentido, creio que, no que compete aos nossos anseios de nos tornarmos imortais, nada se compara às memórias e marcas que deixamos na vida de outras pessoas, sejam elas boas ou ruins.
Afinal, somos um personagem no teatro da vida dos outros, e nem sempre sabemos que papel estamos desempenhando. Somos fantasmas nos pensamentos, saudades ou temores de outras pessoas.
Fomos o bebê fofinho e cheio de vida que veio alegrar a vida de uma avó ou avô, mas também seremos o tio, pai ou avô na memória fragmentada - e carinhosa - da infância de nossos sobrinhos, filhos ou netos. Teremos sido um professor já meio esquecido pelos alunos. Um chefe lembrado com nostalgia ou alívio por seus funcionários.
Nosso tempo é hoje, mas foi ontem e será amanhã também.
Não dá pra saber as marcas que deixamos na vida de outras pessoas ou mesmo mensurar os impactos que nossas obras - sejam, estas, comportamentos, um ótimo modelo de planilha, invenções mirabolantes ou um quadro de pintura à óleo - produziram no planeta.
A essência, talvez, esteja na intenção.
Tudo o que somos e produzimos é destinado ao mundo, e fica por aí, na eternidade. As atitudes e palavras proferidas ao vento, ao contrário de tweets antigos, são mais difíceis de apagar.
Não dá muito pra escolher o que será o nosso legado. Podemos até tentar controla-lo, mas é bem provável que nossos esforços sejam em vão. Isso é uma verdade incômoda. Poderão esquecê-lo, simplesmente, ou poderão construir uma estátua de bronze póstuma em nossa homenagem, não sabemos.
Como personagens históricos de grandes civilizações da antiguidade, seremos eternizados em bustos compostos por 85% de cobre, 10% de estanho e o restante de chumbo, e nossos erros e acertos serão expostos às mais variadas intempéries e provações.
E seremos imortais (enquanto dure) na vida de outros, enquanto olhamos pra baixo - ou pra cima - em nossa guarida no além.
Rodrigo, naquele livro quatro mil semanas, o cara fala algo sobre legado e como são raríssimas as pessoas que terão seus legados atravessando tempos históricos. Parece meio triste, mas tbm libertador. Viver nossas vidas sem se preocupar com essas marcas que um dia, desaparecerão. Pra todo mundo, inclusive.
Adorei o texto e as fotos do Rodrigo no passado.
"O meu tempo é hoje" - sigo na pegada do Paulinho da Viola. Tenho 61 (terceira infância, conforme definição do Manuel de Barros) e quero chegar na quarta... Um dia desses comecei a escrever minha autobiografia. Gostei da ideia e hei de retomá-la. Creio que viver bem cada dia é o que importa. Claro que flerto com a ideia de imortalidade (coisa de espiritualista e aposta no "para sempre"!), mas isso não me faz delirar... Um dia de cada vez, sempre!