Provação (ou não levei chocolates para o meu orientador)
"Nós, repetentes, perdemos a detestável ansiedade pelo sucesso. O fracasso nos devolve a nobreza e a alegria"
Ontem, concluí todas as bancas de monografia que estava orientando neste semestre. A "temporada de TCCs”, como nomeei a última semana, foi produtiva e, de certa forma, revigorante. Isso explica meu sumiço por aqui. Nem consegui ler várias newsletters que sigo. Pra quem chegou recentemente, seja muito bem vindo(a)!
Antevendo o meu sufoco em administrar o fim de semestre na faculdade (com aulas, prova final, estágios e apresentação de TCCs), optei por "sofrer férias”, e tirei alguns dias de “descanso” do meu trabalho número um (o serviço público). O trabalho número dois (a docência) precisava de dedicação extra.
Como já escrevi por aqui, este foi o meu primeiro semestre como professor de um curso de graduação em Psicologia. Na verdade, como professor, de modo geral. Apesar já ter tido outras oportunidades ocasionais na docência, considero que só passei agora pelo que chamei, para mim mesmo, de “provação”.
Em julho de 2024, me preparava teórica, técnica e emocionalmente para assumir uma disciplina, um estágio e algumas turmas de trabalho de conclusão de curso. Voltava à PUC do Coração Eucarístico, aqui em Belo Horizonte, agora na condição de professor, onde fui aluno por muitos anos, entre graduação, mestrado e doutorado.

Eu, orientador, supervisor e professor, títulos aos quais eu estava bem pouco acostumado.
Agora, em dezembro do mesmo ano, já livre de algumas preocupações, posso dizer que acho menos estranho ser chamado de professor (ou “prof”, como dizem alguns). É engraçado como nos acostumamos a determinados títulos e vestimos bem algumas “roupas mentais”.
Eu, geralmente tímido e hesitante diante de novos ambientes, fui me habituando aos poucos e testando limites.
Esses testes foram, desde entrar na sala dos professores com maior naturalidade e pegar um cafezinho, até chamar os outros professores (entre eles, alguns que foram meus professores), de colegas (ainda com o devido respeito).
Agora, depois de me acostumar a algumas rotinas do trabalho número dois, me sinto mais à vontade para pensar que “sirvo pra isso” e "gosto disso”. Me sinto bem na sala de aula, nas orientações, supervisões e campos de estágio.
Pra mim, é como se, agora, um grande triângulo mental se fechasse.
Esse triângulo contabiliza o período de 20 anos.
Ele tem, numa ponta, a graduação, que se inicia com a minha entrada na faculdade de Psicologia, em fevereiro de 2004, quando ainda não existia smarthphone por aqui, nem WhatsApp.
Em outra ponta, a minha atuação profissional, que considero ter iniciado em 2009/2010, entre os primeiros atendimentos individuais, atuações em RH e o meu ingresso no concurso público, em agosto de 2010.
E, por fim, na ponta que acaba de se fechar, o término do meu primeiro semestre como professor da mesma graduação em Psicologia, em dezembro de 2024.
Não é louco isso? Talvez não seja, mas é interessante, pelo menos pra mim. Revisitar realidades físicas que fizeram parte da nossa história é muito poderoso.
Ver as rugas que surgem discretamente no rosto como fruto e marca desse tempo.
Na última quarta-feira, entre bancas e orientações, fui presenteado por duas alunas com chocolates. Agradecimentos pela orientação e aprovação da monografia. Eu não lembro de ter levado chocolates para a minha orientadora de monografia em 2008, nem para o leitor.
O que eu pensava na época? O que eu queria da vida? Talvez namorar, fazer sucesso com a minha banda, trabalhar, não sei. Eu tinha apenas 23 anos. Era mais egoísta do que sou hoje? Vivia o ensimesmamento da juventude?
Lembro de ter sido elogiado na banca por ter uma “escrita elegante”. Eu, escrevendo de forma elegante, 16 anos atrás. Ainda sou elegante?
A verdade é que, vivenciar o papel de professor e de orientador, agora em 2024, me fez desenterrar inúmeras lembranças da minha própria formação. E isso é belíssimo.
Estou cansado. Foi um semestre cansativo. Concluí que preciso trabalhar menos e espero descobrir como fazer isso.
Na última sexta-feira à noite, enquanto lia o livro “Poeta Chileno” (Companhia das Letras, 2020), do Alejandro Zambra (poeta e narrador chileno, nascido em 1975), uma mosca, daquelas cuja utilidade para a natureza não se apresenta nem um pouco óbvia, me incomodava muito. Ela parecia querer habitar a minha casa.

Num lampejo de agressividade, dei uma “blusada” nela, o que consiste, basicamente, em atacar a mosca com uma blusa enrolada. Ela pareceu sumir. Nem sinal do inseto nas próximas horas. Fui dormir.
No sábado de manhã, enquanto tomava um café, fui colocar a mesma blusa para pegar algumas encomendas na portaria do prédio. Ao dar daquela “estendida” da blusa no ar, quem estava lá?
a) Minha orientadora
b) Meu leitor
c) O Alejandro Zambra
d) A mosca
Se você disse “a mosca", acertou. Desprezando qualquer desejo meu em relação a ela, a mosca saiu voando como se nada houvesse, como se tivesse aproveitado o ambiente aconchegante da blusa para pernoitar.
Minha próxima leitura é esse livro interessantíssimo do Prof. Robson Cruz, “O Mal-Estar na Escrita Acadêmica”, lançado agora, em outubro de 2024. Gosto bastante do tema e já indico.
Ah, publiquei um capítulo de livro, recentemente. No texto “Afinal, você é a sua própria empresa, né?: os impactos psicossociais da pejotização” (p.333-345), eu, o professor João César de Freitas Fonseca e o graduando Leonardo Miranda, falamos sobre os desafios desse fenômeno, na perspectiva da Psicologia do Trabalho.
O capítulo faz parte do livro eletrônico “Diálogos sobre a saúde mental relacionada ao trabalho”, fruto do XV Congresso Latino-Americano de Direito Material e Processual do Trabalho e II Congresso Internacional de Saúde Mental na Contemporaneidade, que aconteceu em setembro/2024 na PUC Minas.
Termino esse breve relato com um trecho retirado do livro (páginas 142-143) de Alejandro Zambra. Nele, Gonzalo, personagem do livro, escreve uma carta ao seu enteado logo após ele receber a notícia de que vai repetir de ano no colégio. O livro é muito bonito. Leia:
“O tempo nos encurrala. O tempo nos engorda, desenha rugas, cabelos brancos e muletas em nós. Não podemos pará-lo, retroce-dê-lo, adiantá-lo. E, no entanto, repetir de ano é de algum modo como parar o tempo: congelá-lo, enganar momentaneamente o futuro, a morte.
Repassamos com tranquila rapidez as matérias que já conhecemos. Enfim podemos nos demorar: enfim podemos duvidar, aprofundar, rir de nossas feridas, curá-las. Nós, repetentes, avançamos num ritmo próprio, dispostos a nos perder, a nos desviar. Sem medo. Sem medo do medo.
Conhecemos a trama. As perguntas das provas voltam à nossa memória como reconfortantes melodias famosas. São músicas de que não gostamos, mas das quais mesmo assim sabemos a letra.
Observamos nossos professores, assistimos compassiva e generosamente a suas aulas, porque eles também são — agora sabemos — repetentes. Nós, repetentes, perdemos a detestável ansiedade pelo sucesso. O fracasso nos devolve a nobreza e a alegria.
Quase sem nos darmos conta, fazemos as coisas um pouco melhor. Ou decidimos errar de novo. Porque podemos repetir de novo, uma e outra vez. Conquistamos a liberdade de jogar o mesmo jogo até nos cansarmos, embriagados de felicidade; com as palavras de sempre, construímos poemas que nunca ninguém entenderá, nem nós mesmos, porém os lemos em voz alta mil vezes e experimentamos mil vezes o mesmo imenso prazer.
Os que seguiram em frente — os CDFS, os dóceis, os obedientes - olham-nos com inveja nos recreios, porque sabem que não foram sábios o suficiente, que perderam a impagável oportunidade de repetir; os que não repetiram se entregaram de vez, irreversível e ingenuamente, ao tolo jogo do cronômetro e da angústia.
Nós, repetentes, habitamos outro tempo, lendário e novo”.
Um abraço e até a próxima!
Vi por aí:
agora é descansar bem que logo logo chega o próximo semestre, prof! 😅
Muito bom. Lendo seu texto, até me deu saudades de ser professor, profissão que desempenhei com amor por 25 anos. Semestre fechado com a certeza de ter semeado bons frutos é maravilhoso, Rodrigo. Abraço e bom descanso.