Trabalhar demais me faz uma pessoa pior
“O bem-estar não é uma conquista definitiva, ele é um cuidado permanente”
Estou de férias há quase exatos trinta dias. Férias parciais, porque voltei a dar aulas na faculdade há pouco mais de duas semanas, três noites por semana. Contudo, as vinte e quatro horas dos meus dias têm durado muito mais do que antes e sido mais satisfatórias.
Tem tempo que não escrevo por aqui, então, se você chegou recentemente, pegue um café e uma cadeira e seja muito bem vindo.
Outro dia, em um dos momentos de ócio que venho buscando adotar, ao tomar um café e olhar a paisagem, me veio o pensamento: trabalhar demais me fez uma pessoa pior.
Uma pessoa com o tempo contado, prazos mentais sempre expirando e pouquíssimo presente no aqui e agora, no que realmente importa. Uma pessoa agressiva no trânsito, tal qual um “senhor volante” (os velhos sabem), e, por vezes, alienada e insensível no trabalho. Desatento, mas vigilante demais. Exausto. Sem energia, sem perspectivas, mas produzindo.
Sempre gostei de trabalhar, eu acho. Me sentir útil. Sempre gostei de ser reconhecido como alguém inteligente, produtivo, capaz, dedicado. Gosto de me relacionar frivolamente no trabalho.
Pra mim, que estudo e leciono sobre a centralidade do trabalho em nossas vidas e suas possíveis relações com estar saudável ou adoecer, é comum reconhecer o quanto o trabalho me moldou ao longo dos anos. E o quanto me tornei um excelente trabalhador.
Cinquenta horas por semana, sem contar os deslocamentos. Bem possível que muitos trabalhem bem mais, por menos ou mais, mas não entrarei nessa conversa agora. Pra mim, tem sido muito.
É fácil, também, perceber como o trabalho, nas diversas modalidades que ele assume, se tornou uma possível fuga mental da “realidade” de uma vida que passa e precisa ser vivida. As pequenas rugas e dores no joelho e na lombar nos ajudam a enxergar isso, mas nem sempre.
Ser produtivo, conseguir dar conta de tudo e fazer o que precisa ser feito passaram a ser características que não me interessam mais como antes. E daí se publiquei não sei quantos artigos, atingi não sei quantas metas e cumpri meu papel de líder com excelência? Não, não sou ingrato, mas o Rodrigo que é ótimo para os outros passou a não ser tão ótimo assim pra ele mesmo.
Os anos passam e parece que estamos vivendo o mesmo ano várias vezes. Qual natal foi qual. Qual aniversário foi qual. Vinte, vinte e um, dois, três, quatro e agora cinco. Maluquice. Enfim, coisas do tempo como o encaramos hoje.
Assunto de terapia, costumo dar, a quase tudo, um tom de trabalho, obrigação e desempenho. Até a corrida, a academia, a leitura, os filmes, os relacionamentos, tudo vira objeto de trabalho e performance.
É nesse sentido que me vi, nos últimos anos, principalmente, trabalhando vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, já que tudo, não só o emprego, contava para a minha avaliação de desempenho mental, que se caracterizou como a mais rigorosa possível: a que eu fazia de mim mesmo.
Fui um bom filho? Um bom irmão? Um bom namorado? Um bom amigo? Um bom músico? Um bom professor? Um bom psicólogo? Vivi bem o suficiente a minha “primeira metade da vida” (que espero ter sido apenas pouco mais de um terço)?
A conta nunca fecha e, se depender das demandas, os papéis apenas se multiplicam, assim como as expectativas. Pensadores já mataram a charada: estamos vivendo em uma sociedade do desempenho, do cansaço, da exaustão, explorando, cada um por si, suas próprias energias até a raspa do tacho.
Hoje é terça-feira, quase três horas da tarde, vim almoçar com a minha família pra comemorar o aniversário do meu pai e estou aqui, fazendo um pouco de nada, de pernas pra cima, até que dê a hora de ir pra faculdade, à noite, supervisionar um estágio e dar uma disciplina. Faz um calor apocalíptico.
Desde que retornei de uma viagem de duas semanas, bastante transformadoras, na minha humilde auto análise, tenho trabalhado “só dando aula”, o que me permitiu preencher o meu tempo e espaço com pessoas que eu gosto, atividades que eu gosto e o simples ato de estar à toa.
Diferente de outros períodos similares, sinto que, pela primeira vez, em algum tempo, consegui me desligar das obrigações e ressignificar as coisas que eu faço com a simples intenção de ter prazer, descanso e viver a boa vida. Sem escapar, mas viver. Tocar piano, sem precisar ser o melhor. Ler, sem precisar fazer resenha. Correr, sem precisar me superar a cada dia. Se relacionar por prazer, com menos obrigações.
Não quero produtividade a todo custo, quero sossego. Às vezes, me pego querendo “aposentar”. Não, não quero aposentar de verdade. Talvez queira aposentar a minha forma tradicional de me relacionar com o trabalho e com tudo o que, ao tocar, torna-se trabalho, por extensão.
Leio, por aí, que estou na minha fase mais produtiva, entre os trinta e os cinquenta anos, que agora é a hora de trabalhar. Sai pra lá. Acho que estou, na verdade, na melhor fase pra entender que preciso trabalhar menos, me cuidar mais e cultivar a presença e a existência de tudo e de todos que eu gosto.
Parei de usar relógio de pulso. Pequenos livramentos. Cansei de saber quantos passos eu dei no dia de hoje. Contar menos os minutos e ser uma pessoa melhor, com passos indefinidos.
Para Alexandre Coimbra, “estar bem não é estar calmo e absolutamente seguro, mas estar em movimento entre instâncias da vida que lhe agradem”. Me agrada ser o que sou hoje.
Volto a trabalhar integralmente na próxima segunda-feira. As mais de cinquenta horas me aguardam. Que o Rodrigo do futuro saiba ler essas palavras com sabedoria.
Um abraço e até do outro lado.
Como Millenium vejo que o trabalho tomou uma proporção identitária em nossas vidas. Venho também de uma semana de férias onde descobri algo muito importante sobre mim: eu desconhecia a sensação de estar relaxada. Em um dado momento, já com alguns dias de férias, me peguei pensando: "acho que estou com sono". Era um meio de manhã, após uma noite bem dormida e em que eu estava me sentindo felizinha. Não uma explosão de alegria, aquela felicidade tranquila, sabe? E foi aí que me dei conta. O que eu estava sentindo não era sono. Esta felicidadezinha morna e ausência de tensão corporal e intelectual chama-se relaxamento. E eu sou tão desacostumada a sentir isso que dei o nome de sono.
Sempre acho a ideia de 'se aposentar para fazer o que bem entende' meio triste, né. Precisar esperar a velhice para sermos quem gostaríamos de ser é desolador.
Que bom que encontrou sua nova ou boa versão antes!
Um abraço, Rodrigo!