Trabalho e os possíveis não realizados
O homem não se manifesta somente pelo que faz, mas, às vezes e em certas circunstâncias, sobretudo pelo que deixa de fazer (Suzanne Pacaud)
Você trabalha? Muito ou pouco? Conseguiria sobreviver por muito tempo deixando de trabalhar? Se você não é herdeiro de alguma fortuna, nem vive apenas de rendimentos, parabéns, você faz parte da classe trabalhadora ou da classe que vive do trabalho.
Na minha trajetória acadêmica e profissional, alguns estudiosos se tornaram centrais para a minha forma de compreender o mundo e exercer o ofício de psicólogo e professor.
Me lembro que, durante a universidade, ao estudar autores da Psicologia do Trabalho, área que viria a se tornar o núcleo da minha atuação, li textos de um cara francês chamado Yves Clot.
Nascido em Paris, no ano de 1952, careca e simpático, ele era autor de um livro com uma capa fenomenal, toda branca, com uma formiga carregando uma folhinha, chamado “A função psicológica do trabalho” (Editora Vozes, 2006).
Naquele momento, contudo, optei por me interessar mais por Christophe Dejours, outro francês, agora psiquiatra, também parisiense e calvo, nascido em 1949, autor de um livro igualmente curioso, chamado “A loucura do trabalho” (Cortez Editora, 1992), cuja capa trazia Charles Chaplin entre grandes engrenagens, cena do clássico “Tempos modernos”.
Bom, acontece que aquele primeiro francês tinha uma ideia que, mais tarde, se tornaria indispensável para mim: o trabalho que não fazemos, ou melhor, a atividade impedida.
Atividade realizada e real da atividade
Assim como as outras perspectivas clínicas do trabalho (um campo de estudo e intervenção que tem o trabalho como elemento central para lidar com o processo saúde-doença), a Clínica da Atividade se desenvolveu a partir da década de 1980, na França, se alimentando, principalmente, de duas correntes da tradição da psicologia do trabalho francesa: a psicopatologia do trabalho e a ergonomia.
Tendo como seu principal representante o filósofo e psicólogo francês Yves Clot, ela se utiliza da distinção clássica trazida com a Ergonomia entre o trabalho prescrito – aquilo que deve ser feito, ou seja, as normas – e o trabalho real – o que de fato se faz, na prática.
Ou seja, para entender e intervir nos casos de adoecimento relacionado ao trabalho, precisamos investigar o que se dá no espaço entre o prescrito e o real, distância esta que é preenchida a todo momento pela pessoa que trabalha.
Além disso, as clínicas do trabalho pensam o trabalho para além do “emprego”, tomando-o como elemento central de análise e intervenção, já que é o ponto de conexão social, histórico, material e objetivo entre os indivíduos.
Considera, ainda, o trabalho como uma atividade, prática e psíquica, e sede de investimentos vitais do sujeito, em um movimento de apropriação de um meio de vida e transformação dos objetos do mundo. Ou seja, o trabalho tem um sentido central na nossa construção enquanto indivíduos.
Contudo, quando buscamos conhecer uma atividade, trabalho não é só o que podemos descrever ou observar, mas também aquilo que foi suspenso ou impedido. O que ficou nas sombras, esquecido, que não foi escolhido ou possível. Sendo assim, Yves Clot vai além da oposição entre o prescrito e o real.
Para o autor, o que se pode ver é apenas uma parte da atividade, ou seja, a atividade realizada, uma forma de agir escolhida por diversos motivos e que inibe outras maneiras possíveis.
Para chegar a esse entendimento, Clot se vale das ideias do psicólogo russo Lev Vygotsky, conhecido por seus estudos na área do desenvolvimento infantil e pela noção histórico-cultural da construção do pensamento e do comportamento.
Ao dizer que “o comportamento não é, em nenhum momento, uma luta que se acalma”, Clot acrescenta “que o comportamento realizado, que se pode observar, é apenas uma ínfima parte do que é possível no comportamento. Em outras palavras, pode-se dizer que cada um de nós está repleto, em cada instante, de possíveis não realizados. Ou seja, a atividade realizada é uma ínfima parte do que é possível" (Clot, 2006, p.21).
Dessa forma, o que Yves Clot irá chamar de real da atividade, “consiste no que não se pode fazer, no que se gostaria de fazer, no que poderia ter sido feito e mesmo no que se faz para não fazer aquilo que deve ser feito” (Lima, 2007, p.100).
Fiz o esquema abaixo para facilitar o meu próprio entendimento:
Dessa forma, temos, basicamente, três registros para compreender e intervir sobre o trabalho: o prescrito (as normas), o que ocorre na prática (atividade realizada) e a dimensão suspensa (real da atividade), mas que não deixa de existir.
“E eu com isso?”, você pode estar pensando (espero que não). Vamos em frente e eu prometo uma conclusão.
O trabalho bem feito
Quando começamos a nos sentir distantes de nossa atividade? Quando não mais nos identificamos com ela ou sabemos definir se está sendo bem feita ou não?
Bom, no meu caso, me lembro de algumas vezes me sentir feliz ao perceber que estou entregando um bom trabalho. Quando isso acontece, percebo que estou utilizando minhas capacidades, direcionando minha energia e inteligência para algo útil, que considero de boa qualidade e que, satisfatoriamente, vejo reconhecido por meus colegas.
Consigo me enxergar na minha criação e me sentir orgulhoso.
Além disso, consigo discutir a sua qualidade, pensar sobre uma melhor forma de executá-lo e reinventá-lo.
Entretanto, como disse, isso ocorre com alguma frequência e não sempre. Dificilmente, nos dias de hoje, em boa parte no “mundo do trabalho”, os sentimentos de orgulho e identificação com o próprio trabalho se mostram como uma regra. Na verdade, mostram-se como uma alarmante exceção. A nossa relação com o trabalho está extremamente adoecida.
Yves Clot, ao dizer que atividade não é apenas o que é feito, mas também o que ainda não foi feito, entende que “o sonho é parte da atividade. Inclui o que eu fiz e o que eu não fiz” (p. 105) e, o que nos faz sofrer e nos adoece no trabalho, é a atividade impedida, ou seja, o fato do sujeito desejar trabalhar mas não poder.
Mas não se engane. ‘Não poder’ não é estar desempregado. É algo mais.
O que podemos chamar de trabalho bloqueado é aquele que impossibilita um livre conflito do indivíduo e do seu coletivo com o objeto do seu trabalho, com os riscos, desafios e demandas. É algo que inibe, limita e que envolve um conjunto de aspectos, como as condições de trabalho, sua organização, gestão e relações necessárias para sua execução.
Quando isso ocorre, o sujeito é desprovido do objeto em que investir sua energia vital, se esvaziando, sendo privado do seu poder de agir, ou seja, sua autonomia.
A atividade impedida
Para Pedro Bendassolli (2011), psicólogo e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a atividade torna-se impedida por algumas razões.
Em primeiro lugar, há uma perda de significado, geralmente motivada pela impossibilidade de discutir os critérios de qualidade do trabalho. Isso ocorre quando apenas realizamos atividades prescritas pela organização, sem discussão, por obrigação, tornando-as assim atividades vazias. Não nos reconhecemos nelas.
Em segundo lugar, quando a organização não oferece recursos para realizarmos a atividade conforme nosso desejo ou, pior, atrapalha a realização da atividade. Isso ocorre quando, por exemplo, a empresa estabelece critérios inconciliáveis de desempenho com a nossa expectativa ou ainda quando desfragmenta os coletivos, isolando e impedindo o diálogo entre profissionais do mesmo gênero.
Retomando minha percepção tardia sobre a importância do que diz Yves Clot, não consigo mais enxergar qualquer realidade de trabalho sem me questionar as infinitas possibilidades e impossibilidades contidas em qualquer atividade.
Afinal, como observo em minha experiência profissional e pude constatar em minha pesquisa de doutorado, uma das principais causas de adoecimento relacionado ao trabalho é, justamente, os esvaziamento do sentido do trabalho, ocasionado, por vezes, por um mundo de possíveis não realizados.
Me lembro quando uma médica com a qual me consultei ilustrou brilhantemente o caminho percorrido entre uma ideia, ainda no campo do sonho e do desejo, até que chegue a se tornar realidade.
Ao buscar um punhado de areia do fundo do mar, tente trazê-lo até a superfície e perceberá que muitos grãos escaparão de sua mão. E, por mais cuidadoso que seja, quando aquele punho cerrado alcançar o ar e vencer o limite das águas, restará apenas uma parte da areia que, inicialmente, estava guardada em sua mão e muito se terá perdido.
É mais ou menos como enxergo nosso trabalho, um constante confronto com a realidade, cheio de sonhos, frustrações e discrepâncias, entre o que um dia se imaginou e o que efetivamente se tornou realidade. E que deve ser assim, para que possamos ser desafiados pelo trabalho, ter espaço e autonomia, e não sermos reduzidos a uma mera de força de trabalho.
Como diz aquele segundo francês, o trabalho sempre será uma experiência que envolve sofrimento e prazer. Uma experiência ambivalente, que nos desafia e nos mobiliza.
Para Dejours (2009),
“Nos dias de hoje, quando se fala do trabalho, é de bom tom considerá-lo a priori como uma fatalidade. Uma fatalidade socialmente gerada. E, de fato, é preciso reconhecer que a evolução do mundo do trabalho é bastante preocupante para os médicos, para os trabalhadores, para as pessoas comuns apreensivas com as condições que serão deixadas a seus filhos em um mundo de trabalho desencantado”.
Ao dizer que “o essencial do trabalho é fundamentalmente invisível”, o psiquiatra francês reforça que “trabalhar nunca é somente produzir, mas é também transformar a si próprio”.
Este entendimento, ou seja, de que a atividade é muito mais do que se prescreve e do que se pode observar, é fundamental para compreender e intervir sobre as situações de trabalho.
Conceber o trabalho como um mundo de possíveis realizados e possíveis latentes, é fundamental para se pensar situações e oportunidades de trabalho que promovam crescimento e saúde, ao invés de destruição e doença, nas pequenas, médias e grandes organizações.
Esta é uma, dentre as diversas formas de se pensar as relações entre trabalho e o processo saúde-doença.
Finalizo com uma bela passagem de Dejours (2009):
“Gostaria de sublinhar que as novas formas de organização do trabalho podem e devem ser questionadas. Elas não têm nada a ver com a consequência inevitável de um destino. Toda organização do trabalho é uma construção humana. Ela só se desenvolve com o consentimento e a colaboração de milhões de homens e mulheres. O trabalho pode gerar o pior, até suicídio, mas ele pode gerar o melhor: prazer, autorrealização e emancipação. É graças ao trabalho que as mulheres se emancipam da dominação dos homens. Não existe nenhuma fatalidade na evolução atual. Tudo depende da formação de uma vontade coletiva a fim de reencantar o trabalho”.
Referências
BENDASSOLLI, Pedro F. Mal-estar no trabalho: do sofrimento ao poder de agir inRevista Mal-estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. X – No 1 – p.63 – 98 – mar/2011.
CLOT, Yves. Vygotski: para além da Psicologia Cognitiva. Pro-Posições, v. 17, n. 2 (50) - maio/ago. 2006. Disponível em: https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/publicacao/2364/50_dossie_clot_y.pdf
DEJOURS, Christophe. Entre o desespero e a esperança: como reencantar o trabalho? 2009. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/christophe-dejours-como-reencantar-o-trabalho/
LIMA, Maria Elizabeth Antunes. Contribuições da Clínica da Atividade para o campo da segurança no trabalho in Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 32 (115): 99-107, 2007.
Entrevista: Yves Clot in Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 9, n. 2, pp. 99-107, 2006.
Fiquei pensando que o esvaziamento de sentido cria aquele termo que ficou famoso na internet de Fake Job, trabalhos que podem sumir ou ser substituídos por robôs e não fariam falta na sistemática geral de uma empresa. Uma pena também que a emancipação de mulheres (e de homens) foi apenas miragem, porque o que se vê de lá pra cá são retiradas de direitos. Belíssimo texto
Nossa, Rodrigo como essa atividade impeditiva adoece o trabalhador. Cruz credo.
Atualmente eu sou da filosofia do qualquer trabalho é melhor do que nenhum trabalho, pq ficar sem dinheiro para sobreviver é mais humilhante do que o trabalho impeditivo.
Acho bonito quando as pessoas falam sobre trabalhar com algo significativo, mas tbm acho romântico demais. Enfim, um paradoxo: trabalhar com algo que se tenha sentido é maravilhoso, mas trabalho é só trabalho.