Flores, desertos, hábitos e cadernos proibidos
"Viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias, viver é precisamente o oposto, é aquilo que não fazemos todos os dias"
Como anunciado em um texto que escrevi por aqui no dia dezoito de fevereiro (Trabalhar demais me faz uma pessoa pior), voltei ao trabalho há pouco mais de trinta dias e posso afirmar: eu estava certo e já estou torcendo pela semana santa.
No meio disso tudo, busco momentos edificantes e interstícios que possibilitem algum silêncio e alguma conexão com o sossego. Por isso, vamos às dicas culturais!
Livros 📚
Você já leu Afonso Cruz? Deveria.
Afonso Cruz é português, nasceu em 1971, é escritor, ilustrador, designer e músico. Publicou mais de trinta livros e recebeu alguns prêmios por sua obra. Já falei sobre o maravilhoso “Vamos comprar um poeta“, um dos livros mais interessantes e bonitos que já li. Recentemente, terminei a leitura do seu Flores, publicado pela Companhia das Letras em 2015.
Como estive em Lisboa em fevereiro, quis trazer algum romance do autor comprado na terrinha, e pude visitar a Livraria Bertrand, localizada no bairro do Chiado, e que, segundo o livro dos recordes, é a livraria mais antiga do mundo, fundada em 1732. Trouxe Flores, indicação de uma das livreiras.

Basicamente, o romance é sobre a história de um homem que, diante do desmoronamento do seu casamento, resolve recuperar o passado do seu vizinho mais velho que, após um aneurisma, não se lembra de mais nada.
Com um humor ácido, o livro traz uma história bonita sobre memória e escolhas. Destaque para os diálogos no espelho e as conversas imaginárias com o pai. Tenho gostado bastante da escrita do Afonso Cruz.
Na toada portuguesa, me recomendaram a leitura de No teu deserto, do também português Miguel Sousa Tavares. Nascido no Porto, em junho de 1950, Miguel é escritor, jornalista e comentarista político. Esse eu adquiri no formato eletrônico mesmo.
Publicado em 2009, pela Companhia das Letras, esse romance toma o ponto de vista de um jornalista ao relembrar, vinte anos depois, uma travessia do deserto do Saara feita com uma garota quinze anos mais jovem, em 1987. O livro é uma espécie de acerto de contas do escritor com essa mulher, de quem ele guarda poucas fotografias e muitas lembranças.
Também indicação da livreira da Bertrand, este é menos interessante que Flores, mas ainda assim vale a leitura, já que tem belas passagens e traz uma experiência muito única ao resgatar essa viagem de quarenta dias pelo deserto.
Após visitar Lisboa, decidimos passear em Ouro Preto, Minas Gerais, o que pode gerar uma série de reflexões. Nessa viagem de fim de semana, como já falei por aqui, terminei a leitura do primeiro romance da Alana S. Portero, escritora e poetisa espanhola, Mau hábito, publicado pela Amarcord, em 2024.
Desde que fui capaz de estruturar pensamentos, quis contar que eu não era inteiramente eu
O livro é muito diferente de tudo que já li e narra, em primeira pessoa, a experiência de um indivíduo que, desde a infância, não se identifica com o corpo que nasceu, e busca explorar esse sofrimento, trazendo algo bem particular. Recomendo.
Por fim, comento dois livros que li mais no início do ano e que não deram as caras por aqui.
O primeiro, um livro da Carla Guerson, escritora nascida em Vitória, Espírito Santo, em 1982. O romance Todo mundo tem mãe, Catarina, lançado em 2024, pela editora Reformatório, foi indicado a partir do grupo de apoiadores da
, que montou um cronograma de encontros para discutir a leitura, aos quais, infelizmente, não pude comparecer.É um livro muito agradável, com uma protagonista cativante e acho que essas resenhas aqui e aqui exprimem bem o que pensei da leitura. A narrativa “aborda o processo de amadurecimento de uma personagem marcada pela solidão infantil”.
Aproveito para indicar as produções da Aline Valek (e da sua turma), como essa que destaquei em outro texto.
O segundo livro é o marcante Caderno Proibido, publicado pela Companhia das Letras, em 2022, de Alba de Céspedes, escritora, poeta e dramaturga ítalo-cubana, que nasceu em 1911 e faleceu em 1997.
Lançado, originalmente, em 1962, o romance foi, de certa forma, redescoberto, principalmente por se tratar de uma das autoras que consideram ser uma das influências da conhecida Elena Ferrante.
Devo reconhecer que a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de repousar talvez não passe de medo de perder essa única fonte de felicidade que é o cansaço.
Ao abordar a “condição feminina”, a partir do relato íntimo de uma dona de casa na metade do século passado, acredito que o livro trata de papéis sociais, escolhas, vidas não construídas e possibilidades não concretizadas.
O formato de diário faz com que a gente acompanhe a história com apreensão. É um romance angustiante, de certa forma. Foi uma das melhores leituras dos últimos tempos.
Uma série 🎞
Tem sido raro conseguir assistir a alguma série completa. Tenho dado preferência aos filmes. Fico com uma preguiça imensa quando vejo que os episódios duram mais de trinta minutos e que tem mais de uma temporada. Contudo, existem exceções.
Se você ainda não ouviu falar de Ruptura (Severance), venho espalhar a palavra dessa série lançada em 2022, pela Apple TV+, que agora tem duas temporadas completas disponíveis. Só animei de assistir porque a premissa da série é muito interessante.
Como bem descreve o Wikipédia: “a trama segue a vida de Mark (Scott), um funcionário das Indústrias Lumon que concorda em participar de um programa de ‘ruptura’ no qual suas memórias sem relação com o trabalho são separadas de suas memórias com o trabalho”. A primeira temporada é ótima, de verdade, mas achei que a segunda virou enrolação. Aguardemos a terceira.
Um episódio de podcast 🎧
Os algoritmos do Substack (sim, eles também estão por aqui) me levaram ao episódio Transtornos psiquiátricos não são doenças do cérebro, do podcast da Folha, o Ilustríssima Conversa, com a pesquisadora
, que atua como psiquiatra clínica e psicoterapeuta no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.Na verdade, primeiro fiz a leitura do seu texto abaixo, pra depois chegar no podcast.
A médica é autora de "O que os psiquiatras não te contam" (que ainda lerei), livro em que busca discutir “o senso comum sobre os transtornos mentais. Entre eles, o de que seriam resultado de mau funcionamento do cérebro ou de que a especialidade médica se resume a prescrever antidepressivos, calmantes, estimulantes e antipsicóticos”.
Profissional da área ou não, recomendo muito a escuta.
Está disponível nos tocadores, por aí, mas tem no YouTube também:
Por hoje, é só.
Um abraço
Adorei as dicas, Rodrigo. Comprei o Caderno Proibido influenciada por você e a Ludmila, que leram na mesma época...
Agora já anotei as outras indicações! 😅
E esse episódio do ilustríssima conversa está um sabor! Gostei muito!
Valeu pelas dicas, Rodrigo! Já estão anotadas. Do Afonso Cruz li "O vício dos livros" em que fala de sua formação como leitor. Gostei bastante. Abraço.